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A perspectiva de Paulo sobre a ceia do Senhor – parte 1

No contexto dos debates contemporâneos sobre a teologia sacramental, a passagem de 1 Coríntios 11.17-34 tem ocupado um espaço decisivo para a fundamentação teológica do tema eucarístico. Este ensaio busca apresentar uma leitura exegética e confessionalmente orientada da passagem de 1Co 11.17-34 a fim de demonstrar as implicações da teologia paulina da eucaristia para a Igreja cristã, mantendo efetivamente, um diálogo crítico tanto com o legado da teologia reformada do sacramento, quanto às contribuições contemporâneas que surgiram no movimento neoliberal da teologia da Esperança e seus ecos entre os teólogos latino-americanos – especificamente na hermenêutica contextual.

Este ensaio leva em conta que os debates suscitados no decorrer dos séculos, sobretudo na Idade Média, acerca da teologia eucarística, são um forte indício da importância que a Igreja concedeu aos estudos sobre a Ceia do Senhor. Como herdeiros dos erários da teologia reformada é prudente perguntarmos pela validade e relevância dos estudos eucarísticos reformados em nossos dias, não apenas para mapear a contribuição de Calvino (que foi, e continua sendo importante), mas pela própria reflexão eucarística herdada nos credos e nas confissões reformadas, especialmente na relação com o texto de 1 Coríntios 11.17-34. Apesar de velha, a teologia reformada mantém sua pertinência no tratamento bíblico da mesa do Senhor.

A teologia eucarística segue fecundando estudos teológicos hodiernos. Além dos temas tradicionais, tanto na teologia do século XX, como em estudos bíblicos contemporâneos, surgiram novas luzes para a compreensão da mesa do Senhor. Temas como: a dimensão escatológica da Ceia; as implicações da Ceia como sacramento da comunidade messiânica, o lugar da criança na Ceia do Senhor, o significado cristológico da mesa eucarística, além do desafio da mesa do Senhor para aproximação ecumênica das religiões cristãs – e até não cristãs, em alguns casos – são desenvolvidos e aplicados ao contexto da igreja. De certa forma, a teologia latino-americana acompanhou essas ênfases contemporâneas buscando aplicá-las no contexto brasileiro de injustiça social. Tudo isto apenas demonstra que “os sacramentos jamais foram algo de importância puramente teórica para o cristianismo. Desde os primórdios tiveram importância decisiva para a vida e a adoração cristãs. Isto é válido especialmente no caso da eucaristia.”1

  1. As implicações da celebração ilícita da ceia do Senhor
    Uma característica marcante da primeira carta de Paulo aos Coríntios é a ênfase na resolução de tensões entre a doutrina e a prática cristã. Existe uma abundância de exemplos sobre comportamentos e doutrinas que Paulo precisou corrigir através desta carta. Além de problemas morais, relacionais e doutrinários, a comunidade cristã em Corinto também pecava ao reunir-se em torno da ceia do Senhor de forma abusiva. Sabedor desses fatos, com amor e autoridade, Paulo dirigiu uma exortação à igreja de Corinto, a fim de corrigir os abusos praticados diante da mesa do Senhor.

Os versos 17-22 apresentam a problemática que afetava os coríntios quanto à prática da Ceia do Senhor. Deve-se considerar que o apóstolo não abordou o problema da ceia entre os coríntios de uma forma meramente descritiva. Ele não queria apenas demonstrar conhecimento dos fatos ilícitos em torno da mesa do Senhor, mas elencar, com vistas à exortação, as implicações negativas da celebração inadequada da Ceia do Senhor. Olhar para esse trecho focalizando não apenas o erro litúrgico dos coríntios, mas as implicações que decorriam da distorção da ceia do Senhor, é fundamental para entendermos os riscos que a comunidade cristã assumia, quando ignorava o ensino autorizado sobre a Ceia do Senhor.

1.1 Prejuízo para a igreja
Nisto, porém, que vos prescrevo, não vos louvo, porquanto vos ajuntais não para melhor, e sim para pior (1Co 11.17).

Os coríntios já tinham se tornado dignos de elogios porque as tradições que foram entregues pelo apóstolo estavam sendo cumpridas (11.2). Ou seja, havia uma base de ensino apostólico autoritativo, que servia como critério indicar o caminho certo e errado para os cristãos primitivos. Contudo, nesta exortação, o apóstolo afirma claramente que não havia razões para elogiar a atitude dos coríntios, especificamente quando eles se reuniam para celebrar a ceia do Senhor.

Paulo afirmou que os coríntios estavam se reunindo “não para o melhor, mas para o pior” (v.17.) O apóstolo colocou dois termos gregos em contraste: a palavra “krei/tton”, que expressa o sentido de algo “mais preferível, mais vantajoso, melhor”, enquanto que o termo “h-tton” indica o sentido de algo “inferior, mais fraco, pior”.2 Com o estabelecimento deste contraste, fica evidente que a intenção do apóstolo era apontar para o caráter abençoador do culto de Deus, e de forma mais específica, do sacramento da ceia. Ao mesmo tempo, ele tencionava trazer à lume o seguinte fato: todas as vezes que o culto, e principalmente o sacramento da ceia era profanado, os cristãos da igreja de corinto não se reuniam para serem abençoados por Deus, antes, eles se reuniram em torno do pior – para a derrota deles. “Em vez de a comunhão ser um ato eminentemente edificante, estava tendo um efeito dilacerante.”3
 
Portanto, Paulo pressupõe que as pessoas devem se reunir no culto para o melhor e não para o pior. Contudo, quando a ceia não é corretamente celebrada, o povo reúne-se para a derrota, demonstrando assim que a celebração ilícita da ceia do Senhor implica em prejuízo para a saúde espiritual da Igreja.

1.2  Divisões na Igreja
Porque, antes de tudo, estou informado haver divisões entre vós quando vos reunis na igreja; e eu, em parte, o creio (1Co 11.18).

Outra razão levantada por Paulo para não elogiar os coríntios era a divisão (sci,smata). Quando os cristãos em Corinto se reuniam em culto, era uma comunidade dividida que se ajuntava. Paulo tomou conhecimento dos fatos, possivelmente, via relatório de outros membros da comunidade. Cautelosamente, o apóstolo afirma crer em parte no que foi denunciado. Certamente Paulo falou dessa maneira, porque ele já tinha conhecimento de outras formas de divisão na igreja (ver: 1Co 1.11-13).

Ao dizer que os coríntios se reuniam como Igreja (evkklhsi,a|), o apóstolo indica que eles estavam reunidos como povo de Deus em culto. Na perspectiva de Paulo a “evkklhsi,a|” é o termo para descrever o povo de Deus que vive no contexto de uma nova aliança. Por isso Kistemaker afirma com propriedade que o termo igreja “deve ser interpretado no sentido do corpo de Cristo em cultos realizados em vários lugares.”4
 
Pode-se dizer que a comunidade cristã em Corinto já havia experimentado divisões, mas na presente conjuntura, Paulo chama a atenção para a divisão que implicava em graves distorções do sentido da Ceia do Senhor. Os membros da Igreja de Corinto não guardaram corretamente a tradição sobre a Ceia do Senhor que fora entregue, e por isso a Igreja estava dividida. Sendo assim, ao referir-se às divisões no meio da igreja, o apóstolo estava focalizando não apenas a divisão em si, o que já era um fato lamentável, mas como a divisão gestava implicações negativas – sobretudo, a desobediência em relações a tradição apostólica sobre a Ceia do Senhor.

1.3 Contraste entre o falso e o verdadeiro cristianismo
Porque até mesmo importa que haja partidos entre vós, para que também os aprovados se tornem conhecidos em vosso meio (1Co 11.19)  

O uso errado da Ceia do Senhor, retroalimentado pelas divisões (ai`re,seij) na igreja, implicava na manifestação do contraste entre o verdadeiro e o falso cristianismo. Paulo está dizendo que os partidos, serviam de alguma forma, para revelar quem eram os genuínos cristãos. O apóstolo chega a esta dedução de uma forma lógica. O ponto é o seguinte: uma vez que os coríntios, através das divisões e dos partidos, não se conformavam com os limites da tradição autoritativa sobre a Ceia, eles assumiram, por consequência, uma falsa ceia, e uma falsa comunhão. Neste ponto, o comentário de Calvino é pertinente quando ele diz:

Tomo cisma e heresia aqui como sendo uma questão de posição em que um vai além do outro. Assim, o cisma será sempre encontrado onde estão presentes animosidades secretas, onde está ausente aquela harmonia que deve haver entre crentes, ou onde interesses conflitantes impõe sua presença; onde cada um pensa nos próprios meios de assegurar seus direitos, não acalentado o mínimo de interesse no que outros dizem ou fazem.5 

Isto posto numa relação de contraste, o verdadeiro cristianismo se expressava sempre que as celebrações da Ceia ocorriam dentro dos limites da tradição que foi entregue. Por outro lado, o falso cristianismo era manifesto na quebra da tradição evangélica sobre a Ceia. Nesse sentido, as divisões e facções dos coríntios diante da mesa do Senhor se configuram como desobediência no tocante aos limites estabelecidos pelo Evangelho. Os coríntios conheciam a tradição autorizada da Ceia, e mesmo assim, deliberadamente celebravam a ceia deles.

1.4 Obliteração da ceia
Quando, pois, vos reunis no mesmo lugar, não é a ceia do Senhor que comeis (1Co 11.20).
   
No dizer do apóstolo Paulo, sempre que os coríntios se reuniam divididos em torno da mesa do Senhor, eles anulavam a celebração da Ceia do Senhor. Uma vez que a tradição sobre a Ceia do Senhor foi rompida, a implicação imediata de tudo isso em termos do culto era o falseamento (ou ausência) da Ceia do Senhor. Pode-se pensar desta forma por causa do uso que Paulo faz da conjunção inferencial “ou=n”. Essa conjunção “expressa simples sequência ou consequência”. Isto posto, o que Paulo estava afirmando era que a comunidade dividida podia até estar junta no mesmo lugar, mas nun6ca esteve celebrando a Ceia do Senhor – ela se alegrava em outras coisas, mas definitivamente não prestava o culto de Deus.

De acordo com a tradição, acredita-se que os cristãos de Corinto realizavam uma grande refeição comunitária denominada de ágape. Alguns estudiosos são da opinião que o ágape precedia a mesa do Senhor.7  Outros entendem que quando Paulo fala da mesa do Senhor, ele pensava em uma refeição apenas. Desta forma, “a prática que ele reprova não é a de uma refeição separada (precedente) da Ceia do Senhor, mas o abuso de uma única refeição (“a Ceia do Senhor”).8 Contudo, independente destas reconstruções históricas, nada altera o juízo negativo que Paulo fez das celebrações eucarísticas da igreja de Corinto.

Para o apóstolo, uma comunidade dividida podia até banquetear-se, mas não se alimentaria do Senhor. Essa era a situação da igreja de corinto. Eles se reuniram para comer e beber, mas a Ceia do Senhor não foi servida, porque os limites do ensino apostólico foram postos de lado. Na perspectiva de Paulo, qualquer celebração eucarística que contradiga os limites da tradição apostólica é falsa e ilusória. Por isso, Prior tem razão quando diz:

Não é de admirar que Paulo não pudesse chamar as reuniões da igreja coríntia de “Ceia do Senhor”: eles não eram submetidas à autoridade do Senhor; mal havia consciência da presença dele, e muito pouco se recordava da morte do Senhor. Como uma reunião dessas poderia ser chamada de “Ceia do Senhor”?9

1.5 Demonstração de egoísmo
Porque, ao comerdes, cada um toma, antecipadamente, a sua própria ceia; e há quem tenha fome, ao passo que há também quem se embriague (1 Co 11.21)

Nesse ponto, Paulo descreve a superfície do problema, cujo estofo era a divisão. Os coríntios envolvidos com a divisão da igreja estavam tomando a Ceia antes, o que resultava em fome e embriaguez diante da mesa do Senhor.

Esse verso tem ocupado um lugar importante na literatura exegética e dogmática sobre a mesa do Senhor. Muitos comentaristas entendem que o conceito de indignidade diante da eucaristia, tem relação direta com a demonstração de egoísmo que os coríntios manifestaram com outros membros. Assim, deduz-se que o conceito de indignidade era muito mais a atitude egoísta dos ricos, que um impedimento intelectual ou uma insubmissão catequética. Dentro desta linha de raciocínio, Fernando Bortolleto afirma que a intenção do apóstolo Paulo era resolver um problema específico na comunidade de Corinto, e não oferecer um ensino geral sobre a celebração da Ceia do Senhor. Para ele, o conceito de indignidade estava diretamente relacionado com a postura dos ricos humilhando os pobres da comunidade no momento em que eles (os mais ricos) comiam antecipadamente a ceia. Para Bortolleto, à medida que esse contexto é delimitado, pode-se perceber o que “significa participar dignamente.”10

De fato, a noção de que havia uma tensão entre ricos e pobres na comunidade cristã em Corinto é deduzível do texto bíblico, e também conta com o apoio da pesquisa histórica. Horsley observou que “em meio a todas as pompas oferecidas pela elite cada vez mais munificente e honrada, os coríntios tinham uma reputação de pessoas incautas e carentes em termos de manejo social, em parte porque os abastados exploravam em demasia os pobres.”11  Essa falta de manejo, culturalmente erigida na vivência social dos coríntios, de alguma forma, despontava seus ecos quando eles reuniam na Ceia. Isto posto, uma reconstrução do contexto social da igreja de Corinto pode ser compatível, em termos, com o seguinte cenário:

Os membros mais ricos da igreja dão acolhida às reuniões e assembleias e, provavelmente, fornecem alimento para todos. Bem de acordo com as expectativas em muitas associações antigas e com a prática muitas vezes adotada em banquetes quando os dependentes de um patrono eram convidados, os hospedeiros ofereciam quantidade maior e qualidade melhor de alimento e bebida aos eram iguais a ele em status social, do que os participantes de status inferior.12 

Embora a dinâmica da indignidade tenha tido algo a ver com o tratamento egoístico dos coríntios em relação aos outros membros pobres da Igreja, isto, contudo, não anula o fato que a tradição sobre a Ceia do Senhor era um princípio geral que os coríntios egoístas estavam colocando de lado. Não se trata, nem de longe, de negar o problema sociológico descrito, e amplamente demonstrado pelo texto, bem como pela reconstrução histórica – ainda que nesse segundo ponto a evidência seja secundária. Trate-se antes de não reduzir a questão do conflito entre pobres e ricos como a única forma de indignidade possível, frente ao ensino geral do Evangelho sobre a Ceia do Senhor.

Deve-se considerar que “nesta carta, portanto, Paulo convoca os coríntios a voltar aos elementos fundamentais do evangelho, como meio de incentivá-los a viver em harmonia.”13  Tendo isto em mente, faz-se mais justiça ao texto bíblico quando considera-se que, na presente exortação, Paulo resgata a tradição da última ceia, bem como as implicações para a postura correta diante da Ceia, que decorrem dessa tradição.

Por vezes, pode-se verificar Paulo recorrendo a uma tradição fixa, ou ao texto bíblico, como princípio geral para resolver um problema específico.  Isto pode ser visto na distorção com respeito à ressurreição de Jesus (1 Co 15.1-3), ou mesmo na questão da mulher exercer o ofício de presbítero na comunidade (1 Tm 2.12-15).

Portanto, reconhecemos que o problema social entre os cristãos implicava num abuso egoístico da mesa do Senhor. Nesse caso, o egoísmo socialmente manifesto era a superfície de um problema cujo estofo manifestava uma distorção do ensino apostólico sobre a Ceia do Senhor.  O tratamento injusto para com os pobres, por parte dos membros mais abastados da comunidade era uma manifestação tangível da rebeldia do coração em relação à lei moral de Deus e ao sentido da Ceia ordenado por Jesus Cristo. Embora Paulo não use o termo “pecado” ao tratar dos abusos perpetrados pelos coríntios facciosos, tanto a disposição de alma, como o comportamento indigno, no dizer dele acarretam culpa. Por causa da indignidade, a comunidade egoísta “provocava seu castigo.”14  De uma forma ou de outra, os coríntios egoístas estavam quebrando o que foi ordenado por Deus.

1.6 Desprezo e humilhação pela igreja de Deus
Não tendes, porventura, casas onde comer e beber? Ou menosprezais a igreja de Deus e envergonhais os que nada têm? (1 Co 11.22a).

Na estrutura literária de uma repreensão às perguntas retóricas tem como finalidade “incitar o outro à refletir sobre o comportamento negativo.”15 Usando, pois, o expediente das perguntas retóricas, o apóstolo confronta os coríntios que estavam deturpando o significado da mesa do Senhor, questionando se eles não tinham suas próprias casas para comer e beber.

Essa argumentação retórica aponta para um fato que não pode ser ignorado sem prejuízo para toda a interpretação da passagem. O fato é o seguinte: os coríntios não podiam colocar a mesa do Senhor no mesmo pé de igualdade com as refeições que eles realizavam nos lares. Paulo não está dizendo que eles deviam cultivar um tratamento desigual dentro das casas deles, enquanto na igreja eles deveriam teatralizar igualdade. Tal conselho seria hipocrisia, tendo em vista que em todas as situações a glória de Deus deveria ser buscada (1 Co 10.31). Considerando que na conclusão da exortação, Paulo desenvolverá o argumento de que eles devem comer nos seus próprios lares (1 Co 11.33-34a), fica evidente que o apóstolo tinha em mente que a Ceia do Senhor não podia ser tratada como as comensalidades cotidianas – que também deviam glorificar a Deus.

No outro questionamento, Paulo levanta a questão do desprezo e da humilhação dentro da igreja. A celebração errada da Ceia implica no desprezo que os egoístas tinham para com a igreja de Deus. Ao desprezar o outro irmão eles estavam desvalendo aquele que foi acolhido na comunhão dos santos. O termo grego “katafronei/te”, usado por Paulo, tem a ver com a ideia de “desdenhar” e “tratar com desprezo”.16 Com isso, Paulo queria comunicar que a mesa do Senhor é um lugar de comunhão e nunca de desprezo daqueles que são irmãos em Cristo e membros da nova aliança. Os coríntios tinham que refletir e mudar essa atitude vergonhosa de desprezo para com outros membros na comunhão dos santos.

O egoísmo dos coríntios também redundava em humilhação dos irmãos que nada tinham para a ocasião da ceia. A atitude egoísta deles fazia os outros irmãos sofrerem vergonha. Os coríntios egoístas deviam refletir e deixar de lado a humilhação dos pobres, pois em torno de Cristo todos são um (1Co 10.17; Gl 3.28).

1.7 Censura em vez de elogio
Que vos direi? Louvar-vos-ei? Nisto, certamente, não vos louvo (1 Co 11.22b).

 
Paulo retomou o mesmo assunto que colocou no v.17 a fim de pôr em relevo o comportamento censurável dos coríntios.  Nesse ponto, parece evidente que o apóstolo Paulo lançou mão do estilo retórico dos discursos epidíticos cuja principal intenção era a declaração de “valores comuns, elogiando ou censurando para influenciar uma avaliação presente.” Em termos gerais, “a retórica epitidíca, portanto, procura usar valores da honra e da vergonha indagando a respeito da louvabilidade das ações de alguém.”  Dito isto, a intenção de Paulo era deixar claro que, a atitude dos coríntios, dividindo a igreja, reunindo-se de forma egoística diante da mesa do Senhor, desprezando e humilhando os irmãos pobres da comunidade, jamais poderia ser considerada uma atitude digna de louvor.
Eles não podiam ser elogiados como foram em outros momentos quando guardaram as tradições. Porém, como os valores gerais do evangelho estavam sendo escamoteados, e sobretudo a tradição da última ceia do Senhor estava sendo desafiada, no somatório desses fatores pesados na balança pendiam para a censura, não para o louvor.

Aplicação
Da mesma forma que Paulo dirigiu uma reprovação aos cristãos da comunidade em Corinto porque eles não consideraram a tradição autoritativa sobre a Ceia do Senhor, a mesma reprovação se dirige aos cristãos de todas as épocas, sempre que eles se encontrarem assumindo uma ceia autônoma, que se guia por padrões alheios aos que foram ordenados por Cristo.

A celebração indevida da mesa do Senhor possui implicações gravíssimas para a saúde da igreja cristã.  O povo de Deus reunido em culto não pode esperar bênção quando as ordenanças do Senhor para o culto são postas de lado. Não existe culto da vitória quando a igreja se reúne em torno de divisões, facções, egoísmo, desprezo do outro irmão e humilhação dos despossuídos. Quando a igreja se reúne colocando de lado os padrões divinos para o culto, ela se ajunta para sua própria derrota.

2. O ensino de Jesus sobre a ceia

Após apresentar a raiz, e as implicações do problema dos coríntios, diante da mesa do Senhor, o apóstolo Paulo trouxe novamente à memória da igreja as palavras de Jesus na última ceia com os seus discípulos.  A tradição que o apóstolo reafirmou aos coríntios, encontra-se nas seguintes passagens paralelas: Mateus 26.26-29, Marcos 14.22-25 e Lucas 22.15-20. A diversidade e a unidade das passagens sinóticas, comparadas com o relato de Paulo demonstram grande harmonia, revelando assim que a igreja possuía um norte seguro para reunir-se da maneira correta diante da mesa do Senhor. O fato de Paulo trazer outra vez a tradição da última ceia de Jesus com seus discípulos, para corrigir o desvio cúltico dos coríntios, revela que o apóstolo buscou apoiar sua exortação do ensino geral do Evangelho de Cristo.

Deve-se ainda observar que Paulo procurou enfatizar as fronteiras sobre o uso adequado da Ceia dentro dos limites ordenados por Cristo. Paulo teve todo o cuidado para ensinar apenas o que Cristo ordenou. Por isso, assim como recebeu de Cristo, ele retransmitiu o ensino sobre a Ceia do Senhor com fidelidade. Os estudiosos debatem sobre como Paulo recebeu essa tradição, se por meio de uma revelação ou por meio do ensino oral através da tradição. O segundo ponto é preferível, ainda que não seja possível fechar a questão sobre o processo de transmissão da tradição de Paulo que repassou aos coríntios.


2.1 Jesus instituiu a ceia entre os seus discípulos

Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei (1 Co 11.23a)

O significado, o mandamento e o paradigma litúrgico da Ceia do Senhor vieram do próprio Jesus Cristo. Apesar de Paulo afirmar claramente que recebeu do Senhor a tradição da última Ceia, alguns estudiosos liberais compreenderam a tradição da ceia do Senhor como uma emolduração literária resultante de uma adaptação dos rituais mistéricos gregos. Essa posição é altamente questionável, mas ainda assim é importante mencioná-la. O estudioso luterano Rudolf Bultmann defendeu essa posição com os seguintes termos:

No cristianismo helenista, assim como ocorreu com o batismo, também a ceia do Senhor foi entendida como sacramento nos termos nos mistérios. (…) Nos mistérios, porém, ele desempenha um papel especial; nele, trata-se da comunhão com um divindade morta e ressuscitada, em cujo destino o celebrante recebe parte por meio da refeição sacramental.18 

No entendimento de Bultmann, é provável que o evento da última ceia até tivesse alguma relação com o Jesus histórico, mas ainda assim, a forma literária do escrito paulino encerrou o dito da ceia numa moldura literária mistérica. Sendo assim, para ele, a ceia do Senhor provavelmente era a comprovação que o “laço da comunhão no sentido da tradição do judaísmo e do próprio Jesus histórico, tivessem sido transformadas em celebrações sacramentais no cristianismo helenista.” 19

Apesar dos supostos pontos de contato que relacionam a Ceia do Senhor com os cultos mistéricos, deve-se reconhecer a fragilidade desta posição antes de tudo porque “nossa falta de conhecimento das práticas secretas dos mistérios torna perigoso traçar linhas de conexão e dependência.”20  Além disso, a clareza da afirmação de Paulo não deixa dúvidas que ele recebeu do Senhor a tradição sobre a ceia.

A terminologia tradicional solene que ele emprega nesse caso não apenas indica que ele se associa a uma versão existente das palavras da instituição, como também marca esses termos como sendo de tradição apostólica e revestidos de autoridade – conforme as palavras (recebidas) “do Senhor” destacam deliberadamente – trazem algum esclarecimento sobre o caráter da revelação dessa tradição.”21 

Portanto, ao reafirmar a tradição da última Ceia de Jesus, o apóstolo Paulo estava resgatando os limites que definiam o correto uso da Ceia, do uso abusivo dela. A mesa do Senhor é regida pela instrução do próprio Cristo. O problema dos coríntios tinha a ver com a adoção de atitudes que não mais refletiam o significado do ensino geral sobre a ceia. Ao afirmar que a tradição foi entregue aos coríntios, Paulo deixa claro que os coríntios conheciam os limites impostos pelo ensino do Senhor.

2.2 Jesus estabeleceu o significado da ceia
Que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; 24 e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. 25 Por semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim (1 Co 11.23b-35)

A prática abusiva dos coríntios diante da mesa do Senhor não era compatível com o significado da ceia do Senhor entregue pelo próprio Jesus. Mas a questão é: qual o significado da ceia do Senhor? Para chegarmos ao cerne do sentido da ceia é preciso considerar três coisas: 1) a natureza da refeição que Jesus compartilhou com os seus discípulos; 2) o significado do pão e do vinho dados por Jesus; 3) o comer e beber em memória de Jesus.

2.2.1 O significado da refeição

Quanto à natureza da refeição de Jesus com seus discípulos, de acordo com os relatos sinóticos, ela seguramente “tinha o caráter de celebração pascal.”22  Pode-se chegar a essa conclusão observando a introdução à narrativa da última ceia do Evangelho de Lucas, bem como a linguagem vicária, ou sacrificial, que é comum em todas as narrativas sinóticas e também no texto paulino.

O Evangelho de Lucas não deixa dúvida que o contexto da última ceia de Jesus com seus discípulos transcorreu numa cerimônia pascal:

“Chegada a hora, pôs-se Jesus à mesa, e com ele os apóstolos.  E disse-lhes: Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes do meu sofrimento. Pois vos digo que nunca mais a comerei, até que ela se cumpra no reino de Deus.” (Lc 22.14-16).

Deve-se notar, que além da linguagem sacrificial, que remete ao contexto da celebração pascal, o dito de Jesus também aponta para o significado escatológico justaposto que indica o cumprimento no reino de Deus. Esse ponto será elaborado no tratamento mais adiante na seção dos princípios para a correta participação da mesa do Senhor.
Além da evidência de Lucas acerca do contexto pascal da última ceia de Cristo com os seus discípulos, todos os sinóticos, bem como o texto paulino, registram a linguagem vicária da entrega que Jesus fez de si mesmo. Todas as narrativas concordam que Jesus entregou “a si mesmo” de maneira vicária:

Mateus 26.28 Marcos 14.24 Lucas 22.19-20 1 Co 11.24
“Porque isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados.” “Então, lhes disse: Isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos.” “E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é o meu corpo oferecido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós.” “e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim.”

Logo, deve-se reconhecer que na última ceia de Jesus com os seus discípulos, ele se referiu a sua morte na cruz como uma morte sacrificial, ou seja, uma morte vicária para a remissão dos pecados “de vós” e “de muitos”. Como bem observou Joaquim Jeremias: “usando expressões próprias da língua sacrifical, Jesus apresentou a sua morte como morte substitutiva.”23 

Dito isto, o entendimento que os cristãos primitivos tiveram, inclusive Paulo, era que a Ceia do Senhor significava uma celebração da nova aliança fundamentada na morte de Jesus em lugar do seu povo.  Pode-se chegar a essa conclusão considerando que,

Paulo já havia feito alusão ao pão asmo, referindo-se a Jesus como ‘nosso cordeiro da páscoa’ que foi sacrificado (…) e isso mostra que, para Paulo, as palavras ditas na Última Ceia significam que Jesus estava cumprindo o papel sacrificial do cordeiro no estabelecimento da nova aliança.24 

Este contexto sacrificial não pode ser desconsiderado para o entendimento da repreensão que Paulo direciona aos coríntios. A atitude divisória deles excluindo os pobres, deturpava o ensino geral do Evangelho sobre a mesa do Senhor. O pão e o vinho não tinham como objetivo promover embriaguez, desprezo e humilhação.

Jesus Cristo estabeleceu a Ceia para que os seus discípulos pudessem alegrar-se no perdão de Deus, com base no sacrifício que ele fez de si mesmo, de uma vez por todas. “A base da refeição sacrificial encontra-se no sacrifício: por causa de seu caráter expiatório, o sacrifício abre caminho para o comer e beber com um coração que se alegra no favor de Deus.”25  Nesse sentido, pode-se afirmar que a “ partilha do pão e do cálice constitui um evento em que a fé apreende o significado da pessoa e da obra de Cristo” , e na experiência negativa dos coríntios, o sentido sacrificial da morte de Jesus estava sendo escamoteado.

2.2.2 O significado do pão e do vinho

Na última ceia com os seus discípulos, Jesus Cristo deu significado ao pão e ao vinho e os relacionou com o seu corpo e o seu sangue. No decorrer dos séculos o pensamento cristão tem oferecido várias tentativas de compreensão do significado do pão e do vinho na instituição da Ceia do Senhor. A relação do pão e do vinho com o corpo e o sangue de Cristo é inconteste, mas a questão é: como se dá essa relação? Ela é realística? É simbólica? É metafórica? Ainda que em termos sintéticos, as principais interpretações sobre o significado da relação do corpo e do sangue de Jesus com o pão e vinho da ceia, são as seguintes:

Visão romanista De acordo com a Igreja Católica Romana, o sacramento da eucaristia possui caráter sacrificial de reapresentação de memória da morte de Cristo e aplicação do seu poder. Quem nega que a missa é um verdadeiro e real é considerado anátema. A Igreja Romana também defende o conceito de transubstanciação que em outras palavras significa que pão e vinho são transformados em sua essência, de tal forma que no sacramento estão contidos real e substancialmente o corpo e sangue de Jesus.27
Visão luterana Lutero rejeitava a ideia de missa como sacrifício em favor da igreja. Negava a doutrina da transubstanciação.  Contudo, para Lutero, quando Cristo disse “isto” [no caso o pão] “é o meu corpo”, ele não queria dizer que o pão significa seu corpo, mas antes é “meu corpo”.28 O próprio Lutero disse: “Para que haja verdadeiro corpo e verdadeiro sangue não é necessário que se transubstanciem o pão e o vinho. (…) A contrário, permanecendo ambos o que são, é que é dito com razão: este pão é meu corpo e este vinho meu sangue.”29 A noção luterana sobre a presença de Cristo na ceia é denominada de consubstanciação.
Visão zuingliana Zuínglio, assim como Lutero, rejeitava os dogmas da transubstanciação, bem como do sacrifício da missa. Também discordava da noção de Lutero sobre a presença de Cristo no sacramento. Para Zuínglio, Cristo “não estava corporalmente presente na eucaristia.”30 As palavras de Cristo na instituição da Ceia com os seus discípulos deveriam ser interpretada de maneira figurativa. Quando Cristo diz o pão “é” seu “corpo”, representa que o pão “significa” seu corpo. Nesse sentido a Ceia do Senhor era apenas uma comemoração. 31 O corpo de Cristo está no céu.
Visão calvinista Assim como Lutero e Zuínglio, o reformador João Calvino acompanhava a rejeição quanto a caráter rememorativo do sacrifício da missa, bem como negava a doutrina da transubstanciação e da consubstanciação. Calvino entendia que a Ceia era um banquete espiritual onde Cristo prometeu ser o pão da vida para alimentar as almas dos cristãos. Calvino reconhecia a Ceia como um mistério onde pão e vinho eram os símbolos da nutrição invisível que a igreja participa, quando com fé, recebe o corpo e o sangue de Cristo. Para Calvino era preciso reconhecer a presença real de Cristo na Ceia sem com isso atar sua presença ao pão (transubstanciação) ou dentro do pão (consubstanciação luterana). No dizer de Calvino: “Se é verdade que o signo visível nos é dado para selar a doação da realidade invisível, então, uma vez aceito o símbolo de seu corpo, confiemos que o próprio corpo também é certamente nos é dado.”32

 
Para entendermos o sentido do pão e do vinho temos que continuar mantendo o foco no contexto sacrificial da última ceia de Jesus com os seus discípulos. Nesse sentido deve-se lembrar que na refeição pascal Jesus e os seus discípulos não estavam realizando o sacrifício requerido pela lei. A refeição que Jesus e os seus discípulos celebraram pressupunha que o sacrifício já havia sido feito e a vítima sacrifical já havia sido morta. Dito isto, toda a ambiência daquela mesa remetia à comunhão com Deus com base no sacrifício feito anteriormente.

Dentro do contexto sacrificial, Jesus tomou um pão e disse: “Isto é o meu corpo que será entregue por vós”. Em seguida tomou um cálice e disse: este cálice é a nova aliança no meu sangue derramado em favor de muitos.” Desta forma, o Senhor Jesus, inaugurou o sacramento da nova aliança. No dizer de Vos “é evidente que nosso Senhor representa seu sangue (morte) como a base e inauguração de um novo relacionamento religioso dos discípulos para com Deus.”33  Sendo assim, mantendo os olhos no contexto sacrificial da refeição de Jesus com os seus discípulos, tanto o pão como o vinho seriam os símbolos do seu sacrifício e não o sacrifício propriamente dito. Da mesma forma que a refeição pascal pressupunha o sacrifício de um cordeiro, os discípulos todas as vezes que comessem o pão e tomassem o cálice, deviam lembrar que o pão e o vinho, daquele momento em diante, simbolicamente representariam o sacrifício do próprio Cristo. Jesus não estava se sacrificando na ceia, mas instituindo os elementos visíveis que serviram como sinais do sacrifício absoluto que ele realizaria na cruz do calvário. Portanto, o contexto sacrifical da mesa de Cristo desta forma afasta a ideia de reapresentação sacrifical na eucaristia.

Entretanto, apenas a elucidação da comparação simbólica do corpo e do sangue de Cristo com o pão e o vinho, por si mesma, não faz justiça ao texto sagrado em sua totalidade. Além do uso específico que Cristo fez, é preciso considerar a promessa de que seu corpo seria comida e seu sangue como bebida. Neste ponto é importante considerar algumas notas do estudo criterioso desenvolvido pelo erudito reformado Herman Ridderbos. Ele insiste que na visão de Paulo: “comer, beber e a força derivada disso implicam uma analogia com a apropriação da virtude ou a ação do que ela representa, ou seja, seu corpo e seu sangue.”34  O argumento de Ridderbos leva em consideração a explicação que Paulo fez sobre a mesa do Senhor em 1 Co 10.16-21. Para o apóstolo, o alimento do povo de Deus é Cristo (1Co 10.4). Desta maneira, quando o povo de Deus se reúne para a ceia do Senhor deve ter a consciência que comer do pão e beber do vinho implica em receber Cristo para ter comunhão com ele.  Comentando essa passagem, Calvino diz: “sempre que vejam os símbolos instituídos pelo Senhor, convençam-se e tenham por certo que a verdade da coisa significada está presente.”35  Ou seja, embora haja elementos simbólicos, a força das palavras de Deus exigem da noção de comunhão, uma noção de presença real. Em outras palavras, isto quer dizer que,

ser participante da mesa do Senhor, referido por Paulo nesse contexto, bem como participar da mesa dos demônios, estabelece uma comunhão, dá acesso a uma realidade representada pelo pão, pelo vinho, por uma mesa, um alimento. Não há qualquer questão ou pensamento da transição de uma ‘substância’ para outra, mas a relação assim criada não é somente uma relação noética, mas também algo presente e real. É entrar em contato vivo com a realidade do que é representado pelos sinais externos.36 

Tal visão do sacramento afasta a noção zuingliana de simples memorial, bem como a noção luterana de consubstanciação, tendo que a noção de comunhão com Cristo na mesa é tanto real como espiritual ( 1Co 12.13).

No dizer de Paulo, a mesa do Senhor também apontava para a unidade do povo de Deus (1 Co 10.17). Mesmo sendo a igreja do Senhor composta por “muitos” irmãos e irmãs, quando todos se reúnem para a comunhão com Cristo, o pão único representa que o povo de Deus é um só corpo. “Comer pão junto numa refeição liga os participantes e forma um vínculo de unidade.”37

Dito isto, a falha dos coríntios passava pela ignorância deliberada com respeito ao uso dos elementos. Por conta do egoísmo determinado, alguns dos membros da igreja em Corinto desconsideravam o significado simbólico da Ceia que apontava para a nova aliança com base no sangue de Cristo, bem como desconsideravam a própria promessa de Jesus no tocante a sua presença trazendo alimentação e nutrição para a alma. O egoísmo deles, e a divisão que dela decorria, produzia uma quebra de comunhão uns com os outros.

A ceia instituída por Cristo comunica uma realidade de comunhão tanto vertical como horizontal. Entretanto, os coríntios com suas posturas egoístas e facciosas anulavam a Ceia do Senhor. Sendo assim, é justo afirmar que Paulo não exortou duramente os coríntios apenas por um problema sociológico, mas pelo fato que o significado da Ceia estava sendo posto de lado pelos membros egoístas. Para Paulo, uma comunidade dividida não celebra a ceia do Senhor nos termos e nas formas que ele ordenou. Desta forma,

para os coríntios celebrarem de fato a ceia do Senhor, eles iam ter que levar mais a sério o que ela era na essência: a celebração da redenção operada na nova aliança e que foi possibilitada pela morte autossacrificial de Cristo por eles na cruz. Para reconhecê-la como tal, seria necessário haver uma mudança na maneira em que os cristãos coríntios estavam tratando uns aos outros.38 

2.2.3 O significado da anamnese
A tradição da última ceia, que Paulo reafirmou aos coríntios, constitui uma mesa que é celebrada em memória de Jesus Cristo. Alguns intérpretes tendem a ver essa recordação como um tipo de rememoração daqueles que morrem. Em parte, parece ser esse o sentido que Strong relaciona em sua interpretação da memória de Cristo na ceia. Para ele, “como uma mãe determina aos filhos que se reúnam junto à sua sepultura e comemorem a sua morte, do mesmo modo Cristo determina que seu povo se reúna e se lembre Dele.” 39

A tradição que segue Zuínglio, interpreta a ceia do Senhor como um memorial onde o pão é partido e o vinho é distribuído para que se lembre de Jesus. Mas, em que sentido se dá essa memória? Será que a anamnese é o significado da ceia do Senhor? Como já foi analisado em passagens anteriores, a ceia do Senhor, através do pão e do vinho, simboliza e representa Cristo. Ao participarmos da mesa do Senhor, de alguma forma, mantemos comunhão com Ele. Não é possível fazer justiça à teologia de Paulo sobre a ceia deixando de lado esses pontos que demonstram a comunhão dos crentes com Cristo na eucaristia. Dito isto, a noção de simples memorial não comtempla o ensino de Jesus e de Paulo sobre a Ceia do Senhor.

Novamente faz-se necessário voltar ao contexto pascal da última ceia de Jesus com os seus discípulos, pois o sentido da anamnese da mesa do Senhor está ligado ao contexto sacrificial da última Ceia. Cristo é o cordeiro pascal (1 Co 5.9) que entregou sua vida como sacrifício vicário para a remissão dos pecados do seu povo. A morte de Cristo é o único caminho para a redenção. Desta forma, lembrar de Cristo na ceia é recordar do valor infinito de seu sacrifício. É trazer à memória que a única forma de estar diante de Deus é através do sangue de Cristo derramado para remissão dos pecados. Em termos sintéticos concordamos com Guthrie, quando ele diz:

Na liturgia da Páscoa judaica, o líder de cada família reconta a história dos eventos nacionais do passado para lembrar a cada participante de que ele tem uma continuidade com esses eventos. Algo semelhante pode estar em mente na ordenança cristã, obrigando aqueles que participam dela a se lembrarem da morte de Cristo não somente como um ato passado, mas como uma realidade presente.40 

Os coríntios, por meio de suas divisões e egoísmos manifestos descartavam a memória da obra de sacrificial de Jesus.  Ao invés de comer a ceia do Senhor em seu contexto sacrificial, eles comiam a ceia deles, deixando de lado os termos e as formas ordenadas por Jesus.

Aplicação
Sempre que nos aproximamos da mesa do Senhor de maneira egoística, desprezando o outro irmão em Cristo e envergonhando os que nada tem, nos tornamos dignos de repreensão duras. Contudo, não olhemos apenas para o problema que se apresenta na superfície das nossas mesas. Devemos urgentemente perguntar pela raiz do problema. Somente assim veremos que a postura digna de repreensão diante da mesa do Senhor está diretamente ligada ao descaso quanto ao significado da mesa do Senhor explicitado no evangelho e reafirmado na teologia de Paulo. O problema dos coríntios era um conflito entre a doutrina e a prática.

A igreja de hoje também passa pelo mesmo problema, mas com um agravante: o descaso pela doutrina da Palavra de Deus. A ênfase da teologia do século XX, e da teologia contemporânea, em tratar a religião cristã como um encontro que se dá no paradoxo, trouxe em seu bojo, não apenas uma redefinição da proclamação cristã em termos existenciais (ou de baixo), mas uma atitude de desconfiança com a precisão dogmática em termos de formulação doutrinária confessional. Em termos práticos, onde a teologia contemporânea espraiou sua influência, via de regra, ou o sentido confessional foi relativizado ou foi totalmente reinterpretado em categorias existenciais, ou como se costuma dizer em solo latino-americano: foi interpretado no chão da nossa realidade.

Em nossos dias, mais do que nunca, precisamos reafirmar que a doutrina da Palavra de Deus precede, define e orienta a práxis da igreja. Dito isto, nosso grande desafio é a refirmar novamente o conteúdo doutrinário que Jesus instituiu na ceia com seus discípulos, que é o mesmo que Paulo aplicou à igreja de Corinto. Precisamos recuperar o significado sacrificial da Ceia do Senhor, para relembrando-o como sacramento da nova aliança. Precisamos ter comunhão pessoal com Cristo sem suprimir a verdade que “ele nos amou tanto que tomou sobre si a justiça divina para que pudéssemos ter livre passagem, para sempre.”41  Sem o reconhecimento dessas verdades, definitivamente não é a ceia do Senhor que comemos.

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2RIENECKER, F.; ROGERS, C. Chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Vida Nova, 1985. p. 314
3MORRIS, L. 1 Coríntios. São Paulo: Vida Nova, 1981. p. 126
4KISTEMAKER, S. 1 Coríntios. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 538
5CALVINO, J. 1 Coríntios. São Paulo: FIEL, 2013. p. 395
6MOULTON, H.K. Léxico grego analítico. São Paulo: Cultura Cristã, 2007. p. 306
7PROCTOR, W.C.G. IN: DAVIDSON, F. (ORG). O novo comentário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1997. p. 1208
8DUNN, J.D.G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003. p. 688
9PRIOR, D. A mensagem de 1 Coríntios: a vida na igreja local. São Paulo: ABU, 2001. p. 200
10FILHO, F.B. Um estudo em 1 Corintios 11.17-32 com vistas à participação de crianças na Ceia. IN: FARIA, E.G. (editor). Teologia e Sociedade/Seminário Teológico de São Paulo/ Vol . 1, nº 4 (novembro 2007). São Paulo: Pendão Real, 2007. p. 103
11HORSLEY, R. A. Paulo e o Império: religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004. p. 239
12MEEKES, W. A. Os primeiros cristãos urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 236
13THIELMAN, F. Teologia do Novo Testamento: uma abordagem canônica e sintética. São Paulo: Shedd, 2007. p. 332
14SCHNELLE, U. Paulo: vida e pensamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2010. p. 741
15BERGER, K. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998. p. 181
16ARNDT, W.F; GINGRICH, F.W. A greek-english lexicon of the New Testament and other early Christian literature. London: The University of Chicago Press, 1979. p. 420
17KÖSTENBERGER, A.J; PATTERSON, R.D. Convite à intepretação bíblica: a tríade hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 2015.  p. 434
18BULTMANN, R. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004. p. 201
19Ibid., p. 203
20DUNN, J.D.G. A teologia do apóstolo Paulo. p. 681
21RIDDERBOS, H. A Teologia do Apóstolo Paulo: a obra definitiva sobre o pensamento do apóstolo dos gentios. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 466
22JEREMIAS, J. Estudos no Novo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2015. p. 25
23Ibid., p. 262
24
CIAMPA, R. E; ROSNER, B.S. IN: BEALE, G.K; CARSON, D.A (ORG). Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 915

25RIDDERBOS, H. A Teologia do Apóstolo Paulo: a obra definitiva sobre o pensamento do apóstolo dos gentios. p. 468
26LADD, G.E. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: JUERP, 1985. p. 507
27NOCKE, F.J. Doutrina específica dos sacramentos. IN: SCNEIDER, T (Org). Manual de Dogmática. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 261
28WANDEL, L.P. The eucharist in the reformation: incarnation and liturgy. New York: Cambridge Press, 2006. p. 103
29LUTERO, M. Do cativeiro Babilônico da igreja. São Paulo: Martin Claret, 2007. p. 38
30GONZALES, J.L. Uma história do pensamento cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 84
31BERKHOF, L. A história das doutrinas cristãs. São Paulo: PES, 1992. p. 228
32CALVINO, J. A instituição da religião cristã, tomo 2. São Paulo: UNESP, 2009. p. 775
33VOS, G. Teologia Bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 362
34RIDDERBOS, H. A vinda do reino. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p.312
35CALVINO, J. A instituição da religião cristã, tomo 2.p. 775
36RIDDERBOS, H. A vinda do reino. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p.312
37KISTEMAKER, S. 1 Coríntios. p. 477
38CIAMPA, R. E; ROSNER, B.S. IN: BEALE, G.K; CARSON, D.A (ORG). Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. p. 916
39STRONG, A. H. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2007. p. 1683
40GUTHRIE, Donald. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011. p. 763

Fonte: TEOLOGIA BRASILEIRA

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