A reforma do século 16 e educação – O efeito libertador
Desde que pisamos nesta terra vivemos um dilema no que diz respeito aos caminhos do conhecimento humano. Quer tenhamos sido encaminhados em lares cristãos, quer tenhamos sido alvo de conversão posterior, encontramos dificuldade em reconciliar o chamado e os princípios cristãos – as determinações e ensinamentos da Palavra de Deus – com a aquisição progressiva de conhecimentos a que somos submetidos desde a nossa tenra idade e à qual nos dedicamos, depois de firmarmos nossos próprios horizontes e interesses.
Desenvolvemos com muita facilidade o pensamento de que as coisas espirituais, as questões da igreja, as determinações da Palavra dizem respeito ao nosso futuro espiritual. Enquanto isso, absorvemos conhecimentos diversos, seguimos uma carreira, educamos os nossos filhos e somos educados em um universo estanque, distanciado e divorciado dos conceitos das Escrituras.
Não é que duvidemos da veracidade da Bíblia – até aceitamos tudo e aceitamos doutrinas contidas na Palavra que, muitas vezes, não entendemos plenamente, mas as recebemos tão somente pela fé. No entanto, deixamos que essas convicções não perturbem muito a nossa vida diária, nem as carreiras e profissões que escolhemos. Elas são segregadas àquelas épocas e ocasiões que dedicamos à expressão de nossa religiosidade – cultos públicos e devoções privadas.
Se analisarmos com honestidade a nossa postura de vida, vamos nos encontrar, na realidade, em uma situação de ESCRAVIDÃO em muitos sentidos: Justamente por sermos cristãos e desejarmos estar no seio da “vontade de Deus” somos escravos de um complexo de culpa por nos dedicarmos a atividades várias, às demandas da nossa profissão, quando a igreja e o “trabalho do Senhor” clamam por atenção, ação e envolvimento. Somos, portanto:
• escravos de uma visão que separa o secular do sagrado; o ganha-pão da adoração; a honestidade da vida e prática cristã da desonestidade e descaminho dos negócios.
• escravos de uma visão curta que não enxerga a amplitude dos princípios apresentados nas Escrituras – de um Deus que é todo poderoso, criador e mantenedor do universo; que não nos deu, na Palavra, apenas um manual acanhado de Escola Dominical, mas um conceito e uma compreensão de vida que deve permear toda a nossa existência.
• escravos de uma postura eclesiástica que declara a existência de duas categorias de servos de Deus – os que estão envolvidos em seu trabalho e os que estão servindo ao mundo.
• escravos de uma postura profissional que nos coloca como alienados no meio de uma classe de pessoas perfeitamente integradas com o seu meio, enquanto que nós nos debatemos com contradições metafísicas, em vez de tranquilamente agirmos na redenção da área em que estamos atuando.
No meio desse dilema e dessas tensões, cabe relembrar a força libertadora dessa escravidão e opressão intelectual que foi a Reforma do Século 16. É exatamente a fé reformada, que é acusada por tantos de promover a escravidão das pessoas, pela sua rigidez doutrinária e subordinação ao conhecimento transcendente encontrado nas Escrituras, que nos liberta desse dilema.
A Reforma do Século 16 reapresentou a pessoa de Deus em toda a sua soberania e majestade, aos fiéis que estavam cegos pelo humanismo e obscurantismo reinante na igreja Católica. A Fé Reformada não tratou simplesmente, de realizar uma INTEGRAÇÃO entre o secular e sagrado, mas de demonstrar a abrangência das raízes espirituais de cada atividade, tornando o todo do conhecimento e das atividades humanas algo abrigado e aprovado pela providência divina, subsistindo o próprio Deus como fonte de todo o verdadeiro conhecimento e sabedoria.
É nesse contexto que se desenvolve a ideia e conceito da Educação Escolar Cristã. Uma proposta de educação que se harmoniza em sua totalidade com a revelação especial de um Deus soberano que tem na humanidade a coroa da criação e a quem delegou a absorção do conhecimento necessário a administrá-la. Educar, nesse sentido, não significa apenas transmissão de conhecimentos, ou instrução relacionada especificamente com religiosidade ou adoração. Difere da apreensão de princípios bíblicos recebidos na Escola Dominical ou da presença nos trabalhos eclesiásticos dos domingos. A esse tipo de instrução caberia o nome mais adequado de “educação religiosa”.
Educação Escolar Cristã significa o processo de penetração em todas as áreas do conhecimento humano, como preparo para o exercício de toda atividade moralmente legítima, sob a perspectiva de que Deus tem soberania sobre cada uma dessas áreas. Nenhuma área do saber pode ser adequadamente compreendida quando estudada ou transmitida divorciada do conceito escriturístico de Deus. Quando praticada adequadamente, esta herança maravilhosa da Reforma do Século 16 nos apresenta esse grande aspecto libertador: A Libertação pela Legitimidade de Envolvimento com todas as Áreas de Conhecimento – Em Gênesis 1.28, temos a seguinte diretriz do Criador: “… Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo o animal que rasteja pela terra”. Esse mandamento, pelo qual recebemos a delegação de dominar a terra e sujeitá-la, tanto em seus aspectos físicos como no que diz respeito à vida biológica que ela contém, tem sido chamado, por teólogos reformados do “Mandato Cultural” recebido pelo homem. A implicação é que tal sujeição e domínio envolvem e só se tornam possíveis mediante a aquisição de conhecimentos sobre a criação que deve ser subjugada pela humanidade para a glória de Deus. Ou seja, a aquisição de conhecimentos, o envolvimento em todas as profissões e áreas de esforço intelectual e físico, da parte do homem, constitui-se em atividade legítima, para preenchimento da prescrição divina. E esse é um conceito libertador. Profissionais cristãos não precisam achar que são “crentes de segunda categoria”, mas devem visualizar-se a si mesmos como portadores de um chamado especial, para atuar em seus campos de conhecimento e realizações trazendo glória ao Criador de tudo e de todos.
Abraham Kuyper, em seu livro Calvinismo1 apresenta a harmonia desse entendimento – de que todas as esferas de conhecimento devem ser trazidas à sujeição ao Criador, com a Fé Reformada. Ele diz:
a. O amor à ciência… que objetiva uma visão unitária de conhecimento de todo o cosmo, é eficazmente assegurado pela nossa crença calvinista, na pré-ordenação de Deus (p. 68).
b. A crença nos decretos de Deus significa que a existência e o curso de todas as coisas, isto é, de todo o cosmo, em vez de ser uma frívola sequência do capricho e da chance, obedece à lei e à ordem. Existe uma firme vontade que executa os desígnios tanto na natureza, como na história (p. 69).
c. Somos forçados a confessar que existe estabilidade regularidade regendo todas as coisas… O universo, em vez de ser um amontoado de pedras – ajuntadas aleatoriamente – apresenta-se às nossas mentes como um monumental edifício erguido num estilo coerentemente austero (p. 69).
d. …sem esta visão, não há interconexão, desenvolvimento, continuidade. Temos uma crônica, mas não história (p. 67).2
Foi a teologia da reforma que enfatizou a educação sob esse prisma e que demonstrou o entrelaçamento da divindade com todos os aspectos da nossa existência. É ela que libertou o intelecto humano – na essência e verdade dessa expressão. O homem moderno e pós-moderno se julga liberto “dos dogmas da religião”, mas prossegue se aprofundando na escravidão do pecado, embotando os seus sentidos.
Ao longo da história, expoentes da teologia reformada, têm enfatizado a importância da educação, desde o seu precursor, Agostinho, que escreveu De Doctrina Christiana – um tratado sobre educação, sua importância e seus métodos – até os reformadores propriamente ditos.
Martinho Lutero disse: “Não aconselho ninguém a enviar os seus filhos para essas escolas onde as Sagradas Escrituras não reinam. Qualquer um que não se ocupe incessantemente com a Palavra de Deus, certamente se tornará corrupto. Consequentemente, devemos estar sempre vigiando o que acontecerá com as pessoas que estão nas escolas superiores… Temo que essas instituições de educação superior são portas
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1Editora Cultura Cristã, 2002.
2Paginação e tradução extraída de edição norte-americana.
abertas para o inferno, se não ensinarem diligentemente as Sagradas Escrituras e as colocarem nas mentes dos jovens”.
João Calvino fundou em Genebra a “Academia Cristã” – uma instituição de ensino superior, demonstrando, mais uma vez, a importância da Educação e o seu papel chave na libertação do homem da opressão do pecado e de seu intelecto.
Abraham Kuyper, o estadista e teólogo holandês do século 19, ao fundar a Universidade Livre de Amsterdã, baseou a sua palestra inaugural em Isaías 48.11 – “A minha glória não a dou a outrem”, indicando que quando nos omitimos na esfera educacional, deixando que sejam proclamadas as filosofias anti-Deus – características do adversário – sem qualquer posicionamento e contestação de nossa parte, enquanto passiva e retraidamente assistimos aos seus avanços em todas as esferas e áreas do conhecimento humano, estamos fazendo exatamente o que Deus expressa não permitir: estamos deixando que a sua glória seja dada a outrem e que a escravidão à ignorância espiritual e intelectual seja perpetuada.
Agradeçamos a Deus a libertação ampla, geral e irrestrita que a salvação nos proporciona – fundamentada em sua graça e misericórdia. Abracemos, em toda a sua amplitude, a liberdade de entendimento que foi reavivada pela Reforma do Século 16. Pratiquemos o verdadeiro conceito da Educação Escolar Cristã.
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3Ewald M. Plass, What Luther Says (St. Louis, Missouri: Concordia, 1959)