Os líderes que perdemos
Cruzamento de informações estatísticas de institutos cristãos sobre o meio evangélico no Brasil e o painel do número de mortos
Com base em dados oficiais do IBGE, do Ministério da Saúde e projeções da produção de Comunhão, estima-se que a pandemia de covid-19 já vitimou cerca de 6 mil pastores nas igrejas da região sudeste
Por Priscilla Cerqueira
“Peço orações pelo pastor da minha igreja, que está ruim de covid-19”. “O pastor da minha igreja faleceu de covid-19”. “Que tristeza!”. Frases como essas se tornaram evidentes nos últimos doze meses no Brasil, pelas redes sociais, grupos de WhatsApp ou em cultos.
Com base em cálculos de estudos já feitos pela Comunhão ao longo de 24 anos de história, e com informações de institutos cristãos que produzem estatísticas sobre o meio evangélico, é seguro afirmar que 20% dos membros da igreja no Brasil são líderes em suas igrejas.
Considerando o percentual de evangélicos nos estados do Brasil, pelas estatísticas do IBGE, e o número de mortos por covid-19, segundo o Ministério da Saúde, até 26 de fevereiro deste ano, é possível projetar que, aproximadamente, 6 mil líderes foram levados pela covid-19. Só na região Sudeste.
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A maior organização de igrejas evangélicas do país, a Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB), com mais de 100 mil pastores associados e cerca de 25 milhões de membros, teve um impacto maior. A instituição não informou o número exato de mortes, mas disse que entre as dezenas de líderes mortos estão pessoas de idades variadas.
Muitas mortes foram registradas entre presidentes da denominação em cidades do Paraná, Mato Grosso e Ceará. Só em Cuiabá (MT) seis pastores foram vítimas de covid-19, entre eles, o vice-presidente da CGADB, Sebastião Rodrigues de Souza, 89 anos, e o filho dele, Rubens Siro de Souza, 68 anos. Ambos estavam internados no mesmo hospital.
Em junho do ano passado, no auge da pandemia, três pastores de uma mesma família morreram de covid-19, em Betim (MG). Outros doze parentes foram contaminados. Pastor Pedro Lírio, 3º vice-presidente da Convenção das Assembleias de Deus no Estado do Espírito Santo e Outros (Cadeeso) também perdeu a batalha contra a covid-19 depois de quase 30 dias internado em um hospital em Cariacica (ES).
Fundador da Igreja Viamor House, em Rio Preto, Pastor Sebastião Donizeti, 57, também foi vítima. Não se tem uma estatística entre as denominações brasileiras do número de líderes e membros que morreram, mas as mortes provocaram impacto nas comunidades religiosas do Brasil, que adotaram estratégias diferentes para a retomada de atividades presenciais.
A sensação que temos é que, depois dos profissionais de saúde, que se expõem muito, os líderes religiosos compõem um dos grupos mais afetados nesta pandemia. Mas, por que em algumas denominações está morrendo mais gente do que em outras?
Atuante no combate a diversas doenças infectocontagiosas no Espírito Santo há mais de 40 anos, o infectologista Paulo Peçanha chama atenção para a quebra de protocolos em algumas igrejas.
“Vemos reuniões com aglomeração, uso de máscara por um pequeno número de pessoas, sem a proteção para o momento que estamos vivendo. Não estamos num tempo seguro para reuniões grandes. Isso expõe as pessoas ainda mais”, ressaltou.
Outro ponto abordado pelo médico é o ‘negacionismo’ por parte de alguns pastores, “que negam o impacto da pandemia e permitem, assim, uma aproximação maior um com o outro e até cumprimentos”, diz.
Perigos à volta
A especialista em epidemiologia e saúde pública e membro de uma igreja Batista de Recife (PE), Denise Correia, explica que muitos pastores que já estão com idade avançada e encontram-se no grupo de risco ainda estão expostos na aglomeração.
“Além da idade, o pastor que adoece não está só na igreja, ele exerce outras funções, está em vários lugares, tem contato com muitas pessoas, fica exposto ao vírus”. Também muitos líderes que foram vitimados insistiram em não tomar os cuidados, querendo voltar com os cultos sem olhar as consequências”. “Isso aconteceu por falta de informação da gravidade da situação, e, por isso, muitos negligenciaram os protocolos”, ressaltou.
No entanto, o pastor Paulo Eduardo, da Primeira Igreja Batista de São Paulo, entende que as mortes não aconteceram por conta da permanência das atividades pastorais. “Muitos desses pastores já haviam comorbidades e foram contaminados nas outras atividades, até mesmo pelo contato que tiveram com algum parente”.
O pastor José Ernesto Conte, da Igreja Presbiteriana Água Viva, de Vitória (ES), lembra do versículo: “Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos (Romanos 14:8). “Ou seja, um pastor ao fazer o seu trabalho, pode viver ou morrer e esse vírus é tão mortal quanto qualquer outro que já apareceu na humanidade”, esclarece.
O problema são as novas variantes do vírus que circulam no Brasil, que geraram uma explosão de casos e que podem ser ainda mais transmissíveis. Segundo o Ministério da Saúde, até o final de fevereiro, foram registrados 204 casos no país, sendo 184 deles ligados à variante brasileira descoberta em Manaus (AM), e os outros 20 diagnósticos, do Reino Unido.
“No caso das igrejas, o risco é maior ainda, pois muitas não estão adotando os protocolos de segurança sanitária, realizam reuniões coletivas, colocando a vida das pessoas em risco”, reforça Peçanha.
Em Manaus, onde o foco tem sido maior que em outros estados do país, a maioria das igrejas voltou a realizar os cultos apenas online, como forma de proteger seus membros. Nesse ponto, Denise aponta para a necessidade do bom senso, pois, segundo ela, dependendo dos cuidados adotados pelos pastores, o vírus vai continuar sendo exposto a todas as pessoas.
“A liderança da igreja precisa ter atenção para a quantidade de membros que está apresentando sintomas e, se esse grupo de pessoas for grande, avaliar se não é conveniente suspender todas as atividades, pois em ambientes fechados a transmissão do vírus é maior. Por isso, tem que ser verificada a situação de transmissão da cidade onde a igreja está inserida. Precisamos evitar que a igreja seja um local de transmissão”, ressaltou.
Protocolos sanitários
O Ministério da Saúde não tem orientações específicas para igrejas, apenas orienta para um reforço na higiene pessoal e de ambientes. Tendo as regras estabelecidas pela administração local como base, cada instituição pode escolher ser mais ou menos cautelosa ou até permanecer fechada.
Em julho do ano passado, a Convenção Batista Brasileira (CBB) emitiu um documento com regras de retorno gradual aos cultos entre suas 8.753 igrejas e 4.944 congregações. O documento pede uso de máscaras, que as pessoas não se cumprimentem, usem álcool em gel e mantenham o distanciamento de até dois metros.
O documento foi distribuído para todos os templos do Brasil. A CBB, que conta com 3 milhões e 150 mil membros, diz que as igrejas devem seguir as recomendações das autoridades locais irrestritamente. Onde cultos presenciais estão liberados, é aconselhado que aconteçam com número reduzido de membros e sem pessoas dos grupos de risco.
“Sugerimos que as igrejas observem as orientações das autoridades públicas, pois em cada região as estatísticas de covid-19 são diferentes. Fizemos isso no início da pandemia e até hoje as recomendações são as mesmas”, disse o pastor Sócrates de Oliveira, diretor executivo da CBB.
A Congregação Cristã no Brasil, uma das igrejas pentecostais mais antigas do país, suspendeu todos os cultos presenciais ainda em abril até nova decisão. A igreja Hillsong, de São Paulo, que recebe milhares de pessoas aos fins de semana, suspendeu as cinco reuniões que realizava. As duas igrejas, ramos bastante distintos, adotaram cultos online.
A Igreja Presbiteriana do Brasil orientou seus membros para realização de cultos online ou presencial, de acordo com as limitações determinadas pelas prefeituras locais. Mesmo assim, por precaução, muitas têm transmitido via internet. Por outro lado, na Assembleia de Deus, que é a maior denominação do país, os cultos presenciais têm sido frequentes. Mas as igrejas afiliadas à CGADB foram orientadas a respeitar o distanciamento entre as pessoas e usar a máscara.
“Todos os cuidados necessários para evitar a propagação da doença devem ser tomados, ficando em casa e usando os aparatos que evitam a circulação do vírus”, diz a instituição.
Os templos geralmente são ambientes fechados, o que exige atenção maior às orientações sanitárias para minimizar os riscos de transmissão do novo coronavírus, que pode ser transportado pelo ar em partículas muito pequenas, liberadas quando as pessoas espirram, tossem, falam e respiram.
Isso acontece, principalmente, em cultos de denominações pentecostais e neopentecostais, pois são repletos de músicas e orações em voz alta. Cantar também produz essas partículas, e com isso, a chance de transmissão aumenta.
“A transmissão principal da covid-19 é o contato, só das pessoas respirarem uma do lado da outra o vírus já pode ser transmitido. Em alguns locais de cultos, não existe ventilação adequada, então, respiramos o mesmo ar na hora”, explicou Peçanha. “O ideal é templos abertos e ventilados, além do distanciamento entre as pessoas, higienização constante de objetos de uso compartilhado e reuniões com tempo de duração menor”, acrescentou Denise.
Vacina e cuidados
No Brasil, a vacinação contra a covid-19 começou, mas, por enquanto, só para os grupos prioritários. A vacina é a esperança da imunização, mesmo assim, não estamos livres do vírus. Com os números de casos da doença crescendo novamente, prevenção é o único caminho para evitar o contágio e as mortes.
“Não se pode acreditar que está protegido com a vacina e permitir quebra dos protocolos, achando que pela fé estaremos protegidos. Muitos adoeceram por que não seguirem as regras de proteção. Deus protege no momento de aflição, mas isso não nos permite quebrar as regras de proteção contra a transmissão”, explicou Paulo Peçanha.
O médico, que também é membro da Primeira Igreja Batista da Praia do Canto, em Vitória (ES), lembra de um princípio bíblico que muitos crentes se esquecem neste momento: amar o seu próximo como a ti mesmo (Mateus 22: 39).
“Usando máscara e mantendo a distância estamos protegendo a nós mesmo e o outro. Isso é zelo. Precisamos ser rigorosos com isso para não colocarmos em risco a vida das pessoas desnecessariamente”, reforça.
A lição que fica
As mortes foram inevitáveis, mas tivemos casos de pastores no Brasil que, mesmo seguindo os protocolos sanitários, contraíram o vírus, tiveram a saúde debilitada, mas venceram a covid-19. O próprio pastor Sócrates ficou 36 dias internado, sendo 14 deles em respiração mecânica na UTI.
“Estávamos no início da pandemia e nem sabia ainda de todas as precauções. Perdi a noção de onde eu estava. Mas não tive medo, Deus não permitiu isso, muitos até ficaram admirados. Minha cura foi providência divina, o médico até disse que era inacreditável. Por causa disso, tenho pedido, de forma constante e consistente, para as pessoas se cuidarem o tempo todo”, contou.
Acometido pela doença, pastor José Ernesto, 70 anos, viu de perto a dor que a doença traz. E, por isso, ele alerta para os cuidados com a saúde e vai além.
“Obedecer as autoridades quando se fala em normas de segurança e de saúde é ser no mínimo inteligente, faz parte de qualquer sociedade razoavelmente evoluída. Não é só tomar a vacina, temos que seguir os protocolos já mostrados que são eficazes no tratamento”, explica.
Durante a pandemia, as igrejas inovaram, se reinventaram, com cultos online que vieram para ficar. Na pior crise sanitária da história moderna, nunca a igreja foi tão requerida como agora, enquanto célula de comunhão. A beira de uma nova onda,
o mundo estará sujeito a novas pandemias de tempos em tempos.
Então, para o pastor Paulo Eduardo, que está na caminhada pastoral há 34 anos, a lição que fica para todos é uma igreja que vai nascer com líderes que deixaram um legado “de uma igreja mais forte, pujante e viva. As pessoas querem viver mais a experiência de fé, do mover do espírito, da comunhão, do compartilhar o evangelho”.
No entanto, pastor Conte retruca para o fato de “a igreja de repente ter ficado com medo, pavor da morte. Seremos conhecidos por aquela geração que se esqueceu que Deus estava no controle de todas as coisas”.
Se a igreja é tão necessária, ela precisa continuar cumprindo seu papel, que é o de pregar o evangelho, entendendo que Deus é soberano. “Mas, como crentes, é nosso dever, custe o que custar, em qualquer circunstância, compartilhar do Senhor Jesus, o amor, o evangelho, o perdão, a redenção que há em Cristo”, afirma pastor Paulo Eduardo.
Fonte: Comunhão